Pesticide Action Network

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Criminalidade

Guerra Civil
A crise brasileira, tal como agora a descrevemos, corresponde minuciosa e cuidadosamente ao tipo de crise capaz de produzir o sintoma da criminalidade. Assistimos, em nossa terra, provocada pelo capitalismo selvagem, a uma guerra civil crônica, cuja assustadora violência nos enche de pasmo - e pânico.
A criminalidade dos miseráveis, dos famintos, dos desesperados, dos revoltados, exprime uma forma perversa de protesto social, que não conduz a nada e, sem dúvida, piora tudo. O delinqüente, ao cometer o seu crime, não pretende nenhuma transformação da sociedade. Ao contrário, busca identificar-se imaginariamente com o seu inimigo de classe, copiando-lhe caricatamente os defeitos e deformidades. Quando um ladrão assalta um apartamento na Vieira souto, não comete ato de desapropriação socialista. Na verdade, ele quer ocupar o lugar do milionário, usurpando-lhe o status e os privilégios.
Por outro lado, se a delinqüência e a criminalidade são formas perversas de protesto social, as estruturas de dominação do capitalismo selvagem também são formas criminosas de relacionamento social. "Mais grave do que assaltar um banco é fundar um banco" - costumava dizer Lenin, com o seu evidente exagero bolchevique. A piada do velho revolucionário pode, contudo, induzir-nos a pensar. O assalto a um banco é, obviamente, um ato delinqüente, e quem o pratica se coloca fora da lei, exposto aos seus rigores. Já o dono do banco, quando pratica a usura, cobrando juros escorchantes, capazes de paralisar a produção, também comete ato criminoso, sem contudo pagar o mesmo preço do assaltante.
A delinqüência do pobre o coloca fora da lei e o expõe à punição, tantas vezes vingativa e desumana. Com o rico, ocorre quase sempre o contrário. Ele começa por corromper a lei, pondo-a do seu lado. Com isto, comprar a impunidade e conquista, com a pecúnia, o poder e a glória. Ao mesmo tempo, usa a lei pervertida para combate o protesto criminoso do pobre. É nesse nível, duplamente perverso, que decorre a repressão policial pura e simples à criminalidade, considerada apenas como sintoma e não como efeito de uma grave patologia social. A serem assim avaliadas as coisas, a violência da criminalidade passará a exigir, para seu combate, a violência policial pura e simples. Chegaremos à aprovação da pena capital e à condecoração, por merecimento, do Esquadrão da Morte.
Não há dúvida de que a criminalidade, embora corretamente avaliada como sintoma, nem por isto pode dispensar o tratamento policial conveniente. Há que reprimir, com severidade, os atos anti-sociais de delinqüência, de pobres e ricos. Há que aumentar a eficiência material e moral do aparelho de polícia. Há que amar e praticar a verdadeira justiça.
Até agora, temos estudado o protesto social dos oprimidos sob a forma da criminalidade e da delinqüência. Isto ocorre, como vimos, quando a ruptura com o pacto social provoca, por retroação, a ruptura com o pacto edípico, havendo o retorno do recalcado. Esta, entretanto, não é - felizmente! - a única forma possível de protesto dos oprimidos, na medida que o pacto social venha a tornar-se intolerável. É viável romper-se com o pacto social sem que isto implique a ruptura com a Lei do Pai - o ou Lei da Cultura. Mais ainda: esse rompimento pode fazer-se exatamente em nome do elenco de valores que constituem o Ideal de Eu, cimento identificatório integrador, intimamente ligado à função paterna.
Em tal caso, a ruptura com o pacto social perverso, ao invés de provocar a ruptura do pacto edípico, vai reforçá-lo e confirmá-lo. A luta contra a sociedade se fará, não através da criminalidade, mas em nome de altos valores reverenciados pela cultura: a liberdade, a igualdade, a fraternidade, a dignidade do trabalho, o pleno respeito à pessoa humana e aos seus direitos fundamentais.
É por aí, é por esse leito, é no rumo da luta que se propõe a construir o futuro do povo, é por aí que se poderá enfrentar, radicalmente, o problema da criminalidade, na medida que suas origens sejam expostas, questionadas e atacadas - de maneira construtiva. A criminalidade é uma forma enlouquecida de protesto. É preciso que a indignação e a inconformidade do povo possam formular-se em termos políticos, de modo a torná-la desnecessária e, portanto, verdadeiramente ultrapassável.
Ninguém duvida que a criminalidade, no momento, pelo caráter que adquiriu, de guerra civil não declarada, está a exigir um tratamento sintomático, criterioso e enérgico. É preciso mobilizar a máquina da polícia, equipando-a, moralizando-a e humanizando-a.
É preciso derrotar o arbítrio, a corrupção, a indignidade, a incompetência. É preciso acabar com a recessão, o desemprego e ao arrocho salarial que matam o povo de fome. É preciso matar a fome do povo.
E, por fim, embora não em último lugar, é preciso ter vergonha e amor à Pátria. Quando isto ocorrer, a patologia social e seu efeito - a criminalidade - estarão debelados.
Hélio Pellegrino é psiquiatra, psicanalista e escritor.
(Este trabalho foi apresentado no simpósio "o Rio contra o Crime", promovido pelas Organizações Globo)

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